SER SOBERANO
- Joana Sobreiro
- 15 de jun.
- 11 min de leitura
Há cerca de dois anos, algures no ano 2023, escutei de um professor de filosofia uma frase que citava Ayn Rand e dizia: “Para dizer ‘eu amo-te’ é necessário primeiro saber como dizer ‘eu’.”
Este professor disse inúmeras coisas, só registei esta e comprei, na mesma hora, os 3 livros que compõem a mais conhecida obra desta filósofa, “A Revolta de Atlas”. Este livro, que em Portugal foi editado em 3 volumes, demorou até então, quase 40 anos a chegar à minha vida. Li as suas 1.200 páginas em 2 semanas e mais houvesse, que eu continuaria a ler. Pareceu-me um encontro com algo que eu já sabia, mas ainda ninguém me tinha dito.
Há livros que nos tocam, nos provocam, nos instigam, nos fazem reflectir, nos afrontam e nos colocam diante de nós mesmos, que nos entusiasmam, criam sentido, fazem sentido... Livros que nos oferecem um antes e um depois. Este foi um desses livros.
Nele a sua principal personagem, John Galt, transporta toda uma visão da existência numa frase — Juro pela minha vida e pelo meu amor a ela, que jamais viverei por outro Homem ou pedirei a outro Homem que viva por mim.
Aqui encontramos a mais poderosa condensação da filosofia de Ayn Rand, chamada objectivismo. Nesta frase não encontramos apenas um ideal ético, mas um grito existencial, uma declaração de independência moral e um repúdio profundo ao altruísmo como princípio moral absoluto.
Se a encararmos apenas na superfície, soará parecer apenas uma declaração de individualismo e autonomia, que afirma a não dependência de um para com outros e que despreza a exploração de outros a esse um. Mas é mais do que isso! É um manifesto radical de auto-propriedade, de que a vida de um indivíduo pertence, exclusivamente, a si mesmo e que qualquer forma de sacrifício forçado, seja imposto por outros ou exigido aos outros, é moralmente errado.
“Juro pela minha vida e pelo meu amor a ela” é a afirmação da vida como um valor supremo. Não de forma abstracta. É a “minha vida” e o meu amor por ela, não um amor genérico pela "vida humana", mas uma ligação concreta e apaixonada à existência individual.
Esta é a raiz do individualismo ético de Rand, que olha o indivíduo como um fim em si mesmo, nunca como um meio para os outros.
“que jamais viverei por outro Homem, ou pedirei a outro Homem que viva por mim.” rejeita tanto o altruísmo tradicional, que exige o sacrifício pelo outro como virtude, quanto o parasitismo moral, que espera que os outros vivam em função de nós, que têm de fazer algo por nós, que nos devem algo.
Ayn Rand não condena o amor, a cooperação, a amizade ou a ajuda mútua, pelo contrário, condena sim a ideia de que o sacrifício seja o padrão moral do bem.
Esta visão filosófica define a sua ética baseada no egoísmo racional – o Homem deve agir em função dos seus próprios interesses racionais.
Não se trata de um hedonismo cego, nem de narcisismo, é outrossim a ideia de que cada indivíduo deve ser o responsável moral pela própria vida, guiado pela razão, não por emoções ou pressões sociais.
Atenção! Não nos percamos em desvios que poderão impedir-nos de observar e reconhecer a profundidade destas ideias. Não nego o que hoje já é aceite e conhecido, que razão e emoção são indissociáveis, que os humanos relacionam-se com o mundo e a existência baseados num sistema psico-afectivo, em permanente actividade autonómica.
A filosofia de Rand, em nada se opõem a esta função, apenas afirma o primado a razão, como instância reguladora da acção individual.
Quando como uma maçã, não nego que a maçã precisa da árvore para existir, mas como a maçã, não a árvore.
O que a sua visão implica, é que nenhum ser humano é um meio para os fins de outros, que o sacrifício não é moralmente virtuoso, que a liberdade individual é um valor fundamental, por ser a única condição na qual o indivíduo pode perseguir os seus valores.
Especificamente na obra “A Revolta de Atlas”, podemos ler um escárnio a tudo o que se coloca como um dever social, apresentando-nos um ojectivismo profundamente libertário, onde podemos encontrar uma série de críticas sociais e políticas, bem como a total oposição aos sistemas que se baseiam na colectivização da moralidade. Mas! Não é sobre as implicações políticas que quero conduzir esta minha exposição, que pretende ser sobretudo uma reflexão em torno da soberania do indivíduo, sobre a sua própria vida.
A frase que Ayn Rand colocou na fala do seu personagem, John Galt, é inquietante porque confronta directamente uma das bases da moral ocidental tradicional – o valor do sacrifício. Desde o cristianismo até às filosofias humanistas modernas, existe a exaltação da abnegação à classe de nobreza.
Rand subverte essa lógica, defendendo que o verdadeiro bem está em afirmar a vida, não em sacrificá-la. Ela redefine o conceito de virtude, afirmando que é virtuoso ser-se independente e auto-interessado de forma ética. Sublinho ética, para que não a percamos neste caminho de reflexão.
Mas não podemos negar que esta visão de virtude levanta dilemas e questionamentos. Poderemos nós viver uns com os outros, sem o compromisso do dever entre as pessoas? Poderá uma sociedade funcionar sem esses laços? Onde fica a virtude da compaixão em tudo isto? A doação ao outro, o amor e o acto de cuidar, a solidariedade, são valores implicitamente sacrificiais. Como seremos nós humanos se perdermos o valor do sacrifício? Onde ficará o amor, a empatia e a solidariedade?
Para muitos críticos deste pensamento, o "egoísmo racional" de Rand é apenas uma justificação moral sofisticada para o individualismo extremo e o desprezo pelo dever social. Segundo autores que a contrapõem, Rand é acusada de que ao opor-se ao altruísmo como princípio moral, rejeita a ideia de que o bem do outro possa ser um valor em si mesmo, enfraquecendo a base ética de atitudes como compaixão, solidariedade, empatia, cooperação, amizade e ajuda mútua, que são essenciais para a co-existência com outros.
Há ainda quem acuse Ayn Rand de confundir liberdade com indiferença moral, ao identificar que Rand defende que cada um deve viver para si, sem deveres para com os outros. Criticando que esta visão pode degenerar numa sociedade onde as pessoas deixam de se importar umas com as outras, em nome da autonomia. Acusando Rand de ignorar que princípios de responsabilidade colectiva, não são laços que nos oprimem, pelo contrário, humanizam-nos.
Esta leitura da perspectiva randiana levanta-nos também questões importantes sobre o que define o valor da vida humana e a sua dignidade.
Segundo a ética kantiana ou humanista, a dignidade humana reside na simples condição de ser-se humano. A assunção desta visão como verdade é o que nos permite “não deixar ninguém para trás”.
Nenhum de nós, acredito eu, fica indiferente a um gesto de bondade para com outro. Reconhecemos “humanidade” quando sabemos que existimos numa comunidade que inclui a diferença, a deficiência, cuida do doente e do fragilizado, ajuda aqueles que já perderam força, acolhe os fracos e reconhece dignidade a todos.
O ser humano é, por natureza, um ser relacional e qualquer filosofia que o isole da sua responsabilidade para com outros, empobrece a ideia de liberdade, reduzindo-a a uma caricatura autocentrada.
Mais! Não podemos negar que ninguém nasce ou vive, realmente, em isolamento. Desde o dia da nossa concepção, passando pela data do nascimento até chegarmos a velhos, dependemos, em algum grau, dos outros para sobreviver, crescer, aprender, até mesmo para pensar como pensamos. Se estamos vivos neste momento, eu aqui a escrever e quem estiver desse lado, aí a ler, chegámos aqui porque alguém, talvez muitos “alguéns”, cuidaram de nós em diversos momentos das nossas vidas.
A autonomia, portanto, não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada, construído em conjunto com outros.
É necessário assumir que nascemos dependentes e vivemos dependentes de outros nos primeiros anos de vida. Que a chegada de cada um de nós ao mundo, depende de alguém que abdica de si ou de partes de si, para fazer com que outro cresça e prospere. Que ao longo da vida poderemos voltar a depender e que no seu final, é possível aumentarmos essa dependência. Constatar que isto é uma obviedade e reconhecermos que o estarmos aqui é também resultado do sacrifício de outrem, permite-nos ver a beleza que nos humaniza.
Aqui chegados, acredito que assumimos como válidas estas críticas e questionamentos ao pensamento de Rand e talvez quem estiver a ler este texto, poderá estar a levantar muitas outras.
Nesta reflexão, que espero conjunta, já assumi o meu aplauso ao contributo desta obra, mas não vou negar que as questões que lhe são lançadas, são muito relevantes.
A tensão entre ideias é necessária, sob pena de nada de novo se poder revelar. Por essa razão, irei procurar dentro daquilo que compreendo da filosofia de Rand e dos questionamentos que eu própria corroboro, refutar estas críticas, fazer estas ideias convergir, ou talvez descubra, que a solução para um encontro entre elas, que creio necessário, esteja num outro nível de compreensão.
Mantenhamos então esta tensão, assumindo que a afirmação da autonomia individual não poderá cair no desprezo pelo colectivo, que a rejeição do sacrifício forçado não pressupõe a desvalorização da ajuda voluntária e que a celebração do indivíduo enquanto agente criador da sua própria vivência, não ignora a vulnerabilidade de outros, nem esquece a compaixão.
Perguntas! E se houver uma profundidade não compreendida na visão de Rand? Isto é, e se os princípios por ela defendidos, no seu íntimo, nos revelarem a forma de maior contribuição individual para o colectivo? E se esta filosofia não estiver a ignorar que somos seres gregários e interdependentes, pelo contrário, nos estiver a instigar a ir ao profundo daquilo que podemos ambicionar tornar-nos? E se ela nos estiver a falar da maturidade individual que ocorre quando saímos da lógica do sacrifício e partimos para a intenção de vivermos num colectivo de seres individuais que reconhecem e honram o indivíduo?
Se fizermos apenas uma leitura ideológica, detemo-nos na superfície do que nos está a ser apresentado e tornamo-nos incapazes de captar a dimensão moral mais exigente e ambiciosa que ela propõe ao ser humano. E se a diferença crucial que gera tensão nestas ideias estiver na origem do valor moral?
Proponho que assumamos uma visão integrada do indivíduo, que nasce dependente, cresce no seio de relações de cuidado e amor, e amadurece rumo à autonomia. Que essa autonomia, quando alcançada de forma plena, não nega o outro, pelo contrário, torna-se capaz de amar, ajudar e contribuir, não por dever, mas por escolha consciente, volitiva e poderosa.
Que essa escolha voluntária de contribuir, de partilhar, de amar, tem verdadeiro valor moral intrínseco porque provém de um indivíduo livre, íntegro, soberano sobre si.
E se estivermos diante de um convite à maturidade emocional?
Na sua essência, Rand não propõe um egoísmo cínico ou indiferente. O "egoísmo racional" que ela defende é um chamado à maioridade moral. Na sua obra “A virtude do egoísmo”, Ayn Rand defende a não vivência de deveres impostos, mas viver a partir de valores escolhidos. Não amar por culpa, pena ou obrigação, mas porque o outro se tornou um valor. Que ajudar outro não requeira a tua anulação, mas porque a tua plenitude te leva a querer ver o outro florescer também.
No mundo do altruísmo bacoco, em que ser altruísta é compulsório e por isso um roubo moral, em que nos sacrificamos uns pelos outros em nome do “bem comum”, em que bondade é arrancar um braço para caber em algum lugar ou fazer com que outro se sinta bem, quantos são, de facto, capazes de em pleno ser querer ver o outro crescer e celebrar o seu florescimento?
Assumo que possa ser a minha miopia, mas no mundo por onde tenho andado, quase ninguém aplaude o florescimento dos outros. E digo “quase”, para soar menos radical.
O que Rand nos apresenta é uma maturidade individual que pode tornar a interdependência humana rica, bela e voluntária. Para que ela ocorra é necessário não confundir interdependência madura com sacrifício forçado.
Quando sem me anular, dou de mim, livremente e em amor, estou diante de algo muito maior do que o sacrifício, estou diante da criação, não arranco um braço, acrescento dignidade à existência.
Esta relação que é de soma e multiplicação, exige autenticidade, integridade, consciência e responsabilidade individual. Para Rand a compaixão não é emoção cega, mas resultado do reconhecimento profundo e intrínseco, que brota de dentro do próprio indivíduo que vê o outro como um valor real.
A compaixão imposta torna-se caridade sem alma. A compaixão escolhida é um acto moral pleno.
A diferença que cria tensão entre a filosofia de Rand e aquelas que a criticam está onde nasce o valor. É isto, as divergências resultam de onde se encontra a origem do valor. A discórdia não está no amor, nem na ajuda ao outro, mas em onde se origina o valor moral. Se vem de fora ou se nasce dentro.
Façamos uma visita a definições da física, para compreendermos esta relação de forças, que pretende explicar o “fora” e “dentro”.
Na física a força centrípeta é a força real, que atrai o objecto para o centro da trajetória circular. É o que mantém o corpo no seu percurso. Já a força centrífuga é uma força aparente, que parece empurrar o corpo para fora do círculo, mas só existe do ponto de vista de um referencial em movimento, não inercial. É uma ilusão de separação.
Se transpusermos isto para uma analogia com os seres humanos, a força centrípeta é o nosso centro interior, é aquilo que nos puxa para dentro de nós mesmos.
É o chamado do nosso centro ético, identitário, espiritual. É a força que nos convida à coerência, à presença e à verdade interna.
Por sua vez, a força centrífuga representa as pressões externas, os ruídos, as expectativas, os papéis sociais, o medo, a necessidade de aprovação. Parece que nos empurra para fora, para longe de nós mesmos. Mas é uma força aparente, pois só existe se estivermos num referencial instável, desconectados do nosso centro.
Quando vivemos apenas para agradar, para cumprir, para pertencer, sem escuta interior, estamos num referencial não inercial e a força centrífuga domina.
A vida humana pode ser vista como um movimento circular entre o mundo exterior (social, profissional, relacional) e o mundo interior (identidade, verdade, valor próprio). Quando estamos alinhados com o nosso centro, a força centrípeta mantém-nos firmes, mesmo em movimento. Quando perdemos essa ligação, as forças centrífugas tomam conta e somos arrastados para fora do nosso eixo.
Nesta tentativa de procurar a profundidade daquilo que Ayn Rand nos trouxe, encontramos o ser humano maduro, aquele que reconhece o centro em si e faz dele o ponto de referência, mesmo quando tudo à volta gira. A força centrípeta é o “eu racional e íntegro” que vive por si e não para os outros. Por outras palavras, vive por si e com os outros.
Rand escreveu: “O propósito moral da vida do Homem é a realização da sua própria felicidade. Mas esta felicidade só é possível através de virtudes como integridade, justiça, produtividade e racionalidade.” Ou seja, só um indivíduo maduro, racional e ético é capaz de contribuir verdadeiramente para um mundo melhor.
Um ideal de maturidade ética, que não nega a humanidade partilhada, mas faz do que define humanidade uma exaltação mais exigente.
Rand propõe que só podemos viver numa sociedade realmente livre e solidária, quando cada um é responsável por si, vive em verdade, ama com liberdade e contribui porque escolhe contribuir. Para Rand, o valor da relação humana está precisamente em ser voluntária, racional e mutuamente benéfica. Amar alguém, ajudar alguém, só tem valor se não for imposto nem esperado como obrigação moral.
Na filosofia randiana, toda a relação deve ser uma troca de valores voluntária entre indivíduos livres. Para ser mais explicito: se estás numa relação íntima, pessoal ou profissional e sentes que és visto, ouvido, valorizado e que o que dás te permite crescer, criar, viver com integridade, então essa relação é moralmente legítima. Não é submissão. É cooperação consciente. Mas, se essa mesma relação exige que sacrifiques a tua integridade, que te anules em nome de algo que “devemos”, que reduzas o teu valor, que vivas num estado constante de desconforto ético, então segundo Rand, isso é corrupção da tua alma.
Sacrifício não é virtude. Gratidão não é servidão.
A tua vida não deve ser moeda de troca!
Na lógica de Rand e segundo aquilo que me parece que ela está a mostrar-nos, é que a maturidade ética não está presente quando “fico porque preciso”, mas quando “fico porque isto é coerente com quem quero ser”.
Por todas estas razões é que a frase de John Galt, é uma afirmação radical de liberdade e de dignidade humana.
É um desafio filosófico profundo às concepções tradicionais de ética, sociedade e dever. Propõe um mundo em que o Homem é soberano sobre si mesmo, onde viver não é submeter-se, mas realizar-se.
Se é inquietante, é porque nos força a encarar uma pergunta central: "A quem pertence a minha vida?" Para Ayn Rand, a única resposta moralmente aceitável é: “a mim”.
~ por Joana Sobreiro
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