Se há atributo que vale a pena conquistarmos e desenvolvermos, é a capacidade de nos colocarmos a nós e a qualquer circunstância em perspectiva. Adoptar uma posição perceptiva que nos permita uma visão mais ampla e com mais possibilidades, é o que qualquer pessoa que procura o seu crescimento, pode fazer.
Por essa razão, nos dois últimos artigos, partilhei consigo dois conceitos que acredito serem de grande utilidade para conquistarmos essa amplitude perceptiva. Com os Ganhos Secundários (link) pudemos explorar o que nos impede e nos sabota de fazer mudanças, ganhando uma nova consciência sobre os nossos estados actuais insatisfatórios e com as Intenções Positivas (link), desafiámos a nossa percepção a ver mais além daquilo que pode ser observado em comportamentos.
Assim, é minha intenção, neste novo artigo, partilhar consigo um conceito metafórico que nos permite ver para lá do julgamento negativo que muitas vezes fazemos aos comportamentos alheios.
Nunca atribua à malícia o que pode ser, adequadamente, explicado pelo descuido.
Este é o conhecido ditado da Navalha de Hanlon, que nos sugere que não atribuamos a razões malévolas aquilo que pode ser explicado por outras causas, ou seja, ao avaliarmos negativamente as acções de outras pessoas, não devemos assumir que elas agiram com o desejo de nos prejudicar, desde que haja uma explicação alternativa razoável e viável.
Apesar de já podermos ter aberto esta possibilidade com a noção da existência de intenções positivas por trás dos comportamentos, a Navalha de Hanlon traz-nos mais especificações interessantes. E mais do que isso, ela não nega a existência de intenções positivas por trás dos comportamentos, assim como não recusa a possibilidade de que haja pessoas que, objectivamente, escolhem fazer o mal.
A proposta central deste pensamento metafórico é que não devemos apressar-nos a julgar negativamente as motivações dos outros, sugerindo que as pessoas transgridem devido à própria ignorância e não à intencionalidade de causar dano, a não ser que se demonstre a existência de uma razão irrefutável de que a má acção foi deliberada.
Agregarmos mais esta reflexão a todas as outras que temos feito, pode ser muito útil, sobretudo quando se trata de nos salvaguardarmos do stress e emoções negativas que decorrem da assunção e interpretação da existência de intencionalidade maliciosa dos outros, para connosco.
Por exemplo, imagine que a sua empresa vai fazer uma festa de Natal e todos os seus colegas receberam um convite, todos os convites foram enviados menos o seu e a si não chegou nenhuma informação. Ao aplicar a perspectiva da navalha, ela diz-nos que não deve assumir que isso ocorreu porque a pessoa responsável pela organização da festa não gosta de si, ou não o quer lá, ou está a querer constrangê-lo, se for razoável e plausível que possa ter ocorrido uma falha de comunicação.
Imagine também que vai na estrada, a conduzir tranquilamente na sua mão e um outro condutor se atravessa na sua frente. Provavelmente, a sua reacção automática é de raiva e pragueja, gritando com o outro condutor incompetente. Uma vez mais aplicando a navalha, poderemos considerar que o outro condutor não se apercebeu da sua presença e o fez por ignorância e inconsciência, e não por malícia. Ao abrir-se em si esta nova perspectiva, poupa-se à experiência de emoções negativas que só se fazem sentir em si.
Considere também este terceiro cenário. Imagine que alguém das suas relações próximas faz algo que o incomoda e arrelia, presumir que a pessoa o faz para o irritar, pode ser uma explicação pouco benéfica para a vossa relação, sobretudo se considerar a possibilidade de a outra pessoa não estar consciente de o estar a fazer e, menos ainda, de saber do seu incomodo. Aplicar a navalha, abre portas para que expresse o que está a sentir e que ambos possam melhorar a sua comunicação.
A metáfora da Navalha de Hanlon é, por isso, um conceito filosófico, que se apresenta como um princípio orientador, que nos ajuda a seleccionar a explicação mais provável para um qualquer acontecimento. Por esta razão, é considerada uma valiosa ferramenta de raciocínio, que pode ajudar-nos a lidar com diversos problemas e desafios com que nos vamos deparando no dia-a-dia.
Coisas como ter agendado um compromisso com alguém e a pessoa não apareceu, não significa, necessariamente, que a pessoa não tem nenhuma consideração e respeito por si. Poderá haver uma razão mais plausível, que não pressupõe que algo esteja a ser feito contra si. Ou por exemplo, um email que enviou e não recebeu resposta, não significa que a outra pessoa o esteja a ignorar, ou zangada consigo, poderá simplesmente ainda não o ter visto.
A ORIGEM DO CONCEITO
Para a reflexão que estou a construir consigo, conhecer a origem da Navalha de Hanlon não é de grande relevância. Sobretudo, porque não é unânime quem explorou esta ideia em primeiro lugar. De qualquer forma, como o saber não ocupa espaço, apresento-lhe algumas das cabeças que a pensaram.
A designação Navalha de Hanlon foi formulada como “Nunca atribua à malícia o que a estupidez basta para explicar”, em 1980 pelo programador americano Robert J. Hanlon, como uma regra de raciocínio para eliminar hipóteses. O nome e a sua definição, foram então integradas no livro de Arthur Bloch Lei de Murphy, Volume II: mais razões para as coisas correrem mal. No entanto, o princípio subjacente à Navalha de Hanlon foi mencionado, com diversas formulações, ao longo da história.
O filósofo inglês David Hume, escreveu “Todos nós tendemos a atribuir boa ou má vontade a todas as coisas que nos agradam ou que nos chocam”, na sua obra de 1757, História Natural da Religião.
Este aforismo é também atribuído a Napoleão Bonaparte (1769-1821), mas igualmente com poucas certezas de qual terá sido a sua afirmação.
Goethe em 1774, colocou um dos seus personagens a expressar “Mal entendidos e indolência talvez causem mais desordem no mundo do que a astúcia e a maldade, pois estes dois últimos serão, certamente, mais raros.”
O biólogo alemão Ernest Haeckel escreveu em Os Enigmas do Universo, de 1898 “Dos três grandes inimigos da razão e da ciência, o mais perigoso não é a maldade, mas a ignorância e talvez ainda mais a preguiça.”
Em 1918, o teólogo protestante, Arthur C. McGiffert escreveu que “A ignorância e não a malícia, é o pior inimigo do progresso humano.” E Ayn Rand, filósofa americana, escreveu em 1945 “A causa do mal é a estupidez, não a malícia.”
Como pode verificar com estes exemplos, esta reflexão pululou por diversas cabeças e se formos mais atrás no tempo, podemos associar as suas raízes à Navalha de Ockham, como um princípio filosófico que sugere que a explicação mais simples para um qualquer fenómeno é, geralmente, a correcta.
A Navalha de Ockham, também chamada de princípio da economia, é uma premissa heurística de investigação advinda da escolástica, aplicado à formação de hipóteses que exige parcimónia em termos de exploração da complexidade. O nome surge como uma homenagem a Guilherme de Ockham (1288-1347), frade franciscano, filósofo e teólogo escolástico inglês, cujo princípio é elemento do método científico e aplicado na filosofia da ciência, defendendo que na presença de múltiplas explicações adequadas e possíveis para o mesmo conjunto de factos, deve optar-se pela mais simples. Ou seja, a opção que contiver o menor número possível de variáveis e hipóteses com relações lógicas entre si, deverá ser a escolhida para explicar um fenómeno logicamente.
Esta preferência pela explicação mais simples já remonta a Aristóteles, justificando que a natureza sempre escolhe o caminho mais simples. Logo, extrapola-se considerando que é mais simples e plausível presumir estupidez do que malevolência, visto que para a segunda, possivelmente, precisamos acrescentar uma conjectura, mais complexa, de intenções malignas. No entanto, aplica-se esta regra ao comportamento, justificado no princípio da caridade, mas onde se procura evitar uma oposição entre malícia e estupidez e evitar um falso dilema.
O PRINCÍPIO DA CARIDADE
Este é mais um princípio filosófico que nos convida a assumir a melhor interpretação dos argumentos das pessoas. Ao interpretarmos as declarações de alguém, devemos assumir que a melhor interpretação possível dessa declaração é aquela que o orador pretendia transmitir. Em detrimento de se atribuir falsidade, erros lógicos ou irracionalidade aos argumentos da pessoa, sempre que haja uma alternativa plausível e racional disponível.
Para não deixar esta ideia demasiadamente abstracta, repare como já todos usamos este princípio, mesmo que até ao dia de hoje, não lhe soubéssemos o nome. Imagine que alguém diz “tenho borboletas no estômago”. Se fizermos uma interpretação literal desta afirmação, a declaração torna-se implausível e corremos o risco de dizer que a pessoa que a proferiu é alucinada. Mas nós não fazemos isso, certo? Naturalmente, migramos para uma interpretação figurativa e metafórica que busca aproximar-se do que aquela pessoa está a querer dizer. Sabemos que está a comunicar o seu entusiasmo, não por que o tenha dito de forma literal, mas porque nós nos flexibilizamos para encontrar a interpretação mais adequada, usando, mesmo que inconscientemente, o princípio da caridade.
O uso deste princípio de forma consciente e deliberada, pode trazer benefícios em diversos cenários, incentivando o diálogo, promovendo discussões positivas e melhorando a argumentação. Daí, muitas vezes, este se conjugar com o princípio da navalha e nos ajudar a nos abrirmos ao outro e criarmos vias mais saudáveis de comunicação.
Importa também referir, que o uso destes princípios especulativos não se esgota na aplicação aos outros, pois é igualmente útil dentro dos nossos mapas sabermos que nem toda a gente anda atrás de nós.
Alguma vez sentiu que o mundo está contra si? Alguns de nós, com facilidade, tendemos a presumir que quando alguma coisa corre mal, a culpa está em alguma grande conspiração contra nós. Para estes casos há um passo anterior que precisa ser dado antes de aplicarmos estes princípios. Precisamos de deixar o excesso de auto-centramento.
AUTO-REFERÊNCIA
A noção de excessiva auto-referência é descrita como uma manifestação psíquica de delírio paranóide, apresentado por Ernst Kretschmer, onde este a define como a característica que faz com que o indivíduo atraia para si todos os estímulos externos, como se este fosse o centro do mundo. Mas não precisamos entrar em questões clínicas complexas, que são para outra sede, para reconhecermos que em algum grau ou em algum momento, todos nós, podemos experimentar esta vivência egocentrada.
Como poderá já ter lido no meu artigo Causa-Efeito (link), nele faço algumas reflexões sobre a infantilidade que encontramos em muitos adultos e, acredito eu, que faz sentido fazermos aqui esta ponte.
Se enquanto adultos, temos momentos em que um qualquer evento inócuo ou uma mera coincidência têm um forte significado pessoal, como se fossem “dirigidas a mim”, como as palavras do jornalista esta manhã na rádio eram para mim, ou um vizinho deixou o tapete da entrada do prédio levantado para eu tropeçar, ou alguém atravessou o carro atrás do meu para eu me atrasar, ou a música do restaurante era para eu escutar, ou que qualquer acção ou omissão das pessoas à minha volta têm o objectivo de me afectar, ou que a má disposição de um amigo é por algo que eu fiz, etc. Todos estes são exemplos que poderão demonstrar um exagero no auto-centramento. E utilizei exemplos caricaturados, mas acredito que ilustram a mensagem que quero passar.
Em muitos casos, poderemos mesmo estar a falar de situações absolutamente irrelevantes, como o caso da música no restaurante, mas noutros poderá ser factor de grande distorção do que está a acontecer, prejudicando a nossa capacidade de melhor comunicar com o mundo. Sobretudo quando temos em nós a ideia de que somos o umbigo do mundo e por essa razão tudo é sobre mim e tudo é para mim. Tome este exemplo. É muito comum conhecermos pessoas que ao lhes ser dito “não gosto do bolo que fizeste”, ficam ofendidas. Faz sentido ficar ofendido porque alguém não gostou do meu bolo? Fará se dentro de mim existir uma percepção de que eu e o meu bolo somos a mesma coisa, logo alguém dizer que não gosta do bolo é igual a dizer que não gosta de mim. Pois bem, trago-lhe esta reflexão sobre excesso de auto-referência, exactamente, para lhe demonstrar que ainda antes de aplicarmos a navalha e flexibilizarmos o julgamento que fazemos sobre o comportamento dos outros, precisamos de saber que “eu” e o “bolo” não somos a mesma coisa, e que o sistema solar não gira em torno do meu umbigo.
A APLICAÇÃO DA NAVALHA
A adopção deste modelo mental nas nossas vivências diárias, permite-nos desenvolver melhores relacionamentos, tornarmo-nos menos críticos e menos auto-centrados, e melhorar a nossa racionalidade.
Assumir-se que nas acções dos outros existe a intencionalidade de nos prejudicar, só piora o problema, diminuindo a nossa capacidade de encontrar soluções. Ao darmos aos outros o benefício da dúvida e ter mais empatia, produz em nós mapas mentais com mais opções e, por isso, mais flexíveis na nossa comunicação com o mundo.
No entanto, há duas importantes ressalvas que devem ser mencionadas. A Navalha de Hanlon não implica que as acções nunca ocorram devido à malícia, apenas sugere que desde que seja razoável, é melhor assumir-se que os resultados negativos foram fruto do descuido, desconhecimento ou inconsciência. Bem como, não procura justificar uma acção, cujo resultado foi pejorativo. Ou seja, não implica que se aceite uma acção por esta resultar de estupidez e não de malícia. A ideia é podermos encontrar a explicação mais provável para uma acção, aplicando o princípio da caridade, após a qual poderemos discernir como julgá-la e como agir perante ela.
Esta é uma perspectiva que nos traz mais recursos para lidar com os acontecimentos, não uma forma de aceitarmos qualquer coisa. No essencial, deve servir como regra geral para entender os comportamentos, não havendo garantia de que sejamos levados às conclusões certas, sendo apenas um bom ponto de partida.
Esta ideia fortifica-se com um dos pressupostos fundamentais da PNL: “a pessoa mais flexível dentro de um sistema, tende a dominar o sistema”, aplicando-se às opções, alternativas e escolhas que, naturalmente, resultam dessa flexibilidade. Aplicar a navalha, não pretende criar totós (perdoe-me a expressão), mas fomentar e potenciar a regulação interna para se saber como melhor lidar com cada situação.
Resumindo, aplicar a Navalha de Hanlon pode ajudar-nos a encontrar a explicação mais adequada para as acções dos outros, evitando que sintamos emoções negativas causadas pela assunção imediata de más intenções.
Quer isto dizer, que sempre que estiver a querer entender o comportamento de alguém, cuja tendência primeira estiver a levá-lo, imediatamente, a um julgamento negativo, poderá começar por se questionar se haverá uma explicação alternativa razoável para a acção. Se houver, então poderá começar por assumir essa explicação.
Ter sempre em conta que há mais possibilidades de explicação, do que aquelas que se lhe apresentam no imediato, torna-o um comunicador mais próximo da excelência.
Assim, sempre que quiser usar a navalha, aplique estes questionamentos:
Qual é a probabilidade de uma acção ter ocorrido devido a outras razões que não a vontade de causar dano?
Quão provável é haver dolo na acção, em lugar de outras explicações alternativas?
Quais os custos associados à suposição incorrecta de malícia?
Quais os custos associados à suposição incorrecta da existência de intenções não maliciosas?
Esta ultima questão é igualmente relevante, pois não se pretende que passe a viver no mundo cor-de-rosa onde todos são bons e amiguinhos, e com isso poder estar a colocar-se numa situação, potencialmente, danosa para si.
Lembre-se, aplicamos a navalha para eliminar hipóteses, ficando com a explicação mais simples, mais provável e mais plausível. Logo, trata-se de um princípio filosófico orientador para a ampliação da percepção de variáveis alternativas e não o postulado daquele que exclui a hipótese da existência de malícia. É um convite a que sejamos menos críticos para podermos ser mais curiosos. Questionarmos antes de dar uma sentença instantânea.
A Navalha de Hanlon é uma ferramenta poderosa para a compreensão e empatia de todos, é um potenciador de comunicação e uma via de alargar a percepção.
~ por Joana Sobreiro
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