SER VISTO
- Joana Sobreiro
- 14 de set.
- 4 min de leitura
“Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara.”
Ser-me-á difícil assumir que sei o que José Saramago quis, exactamente, dizer com estas afirmações, na sua obra Ensaio sobre a cegueira. Mas é-me irrelevante conhecer o que quis o autor afirmar, pois as suas palavras chegam a mim para que possa com elas abrir um novo momento de reflexão, sobre a complexidade da existência humana e as suas inúmeras camadas de compreensão. Tocam-me e isso basta, por agora.
Quantas vezes nos cruzámos com alguém que não reparou na nossa presença? Será que sentimos que existimos se não formos reconhecidos pelo olhar de outrem?
Será que existimos plenamente quando ninguém testemunha a nossa individualidade? Quantas vezes o que mais desejámos não foi uma resposta, um prémio ou uma qualquer compensação material, mas apenas sentirmos que alguém nos vê?
O que acontece à nossa identidade quando o mundo nos olha, mas não repara em nós? Será possível sobreviver emocionalmente sem que alguém nos valide como parte do seu mundo?E se a maior fome humana não for de pão, mas de presença? De saber que existe?
Assim escolho começar este novo artigo, como uma espécie de colírio oftalmológico que parafraseia a Amnistia Internacional, ao acrescentar mais uma pergunta: Tens uns olhos tão bonitos, porque não os abres?
O filósofo Emmanuel Lévinas descreveu o rosto do outro como uma convocatória ética – ao olhar o outro, reconhecemos a sua humanidade e, implicitamente, somos convidados a cuidar.
Muito antes de desejarmos sucesso, amor, reconhecimento profissional ou até mesmo segurança física, há uma necessidade silenciosa, invisível, mas profunda, que habita o coração humano – ser visto.
Este não é um mero desejo por atenção, mas um anseio existencial por reconhecimento, por termos a nossa existência validada pelos olhos do outro. Não se trata apenas de sermos olhados, mas de alguém que se detém e repara, permitindo que a nossa existência seja confirmada na consciência de outro ser humano.
Em contextos psicológicos, filosóficos e sociais, o acto de ser visto representa o alicerce sobre o qual construímos identidade, pertencimento e saúde mental, emocional e social.
Esta necessidade atravessa fronteiras culturais, contextos históricos e fases da vida. Está presente na criança que procura o olhar da mãe, no adolescente que deseja ser compreendido, no adulto que precisa que a sua dor seja validada e até no idoso que teme ser esquecido.
Se aceitarmos que ser visto é uma necessidade existencial, negligenciá-la não é apenas insensibilidade, é falhar numa responsabilidade ética. Pois a invisibilidade não é apenas ausência de atenção, é um acto activo de negação da existência.
Donald Winnicott, psicanalista britânico, reforça que o “espelho” do cuidador é vital no início da vida. O bebé, ao ser olhado descobre-se a si mesmo, vê-se através do outro, construindo o seu senso de identidade. “Quando olho, sou visto, portanto existo.” – este espelho emocional não é apenas um processo simbólico, é o próprio fundamento da constituição do "eu".
Reforçamos esta perspectiva com trabalhos como o famoso Still Face Experiment, conduzido pelo norte-americano Edward Tronick, psicólogo do comportamento, que demonstrou de forma dramática como um simples congelamento de expressão por parte da mãe provoca ansiedade, choro e desorganização no bebé, o que evidencia que o olhar responsivo é vital para a regulação emocional.
A Teoria do Apego, desenvolvida por John Bowlby, psicólogo e psiquiatra britânico, também confirma a importância do olhar atento na infância. Crianças que têm as suas emoções vistas, compreendidas e acolhidas, desenvolvem um vínculo seguro e uma maior regulação emocional. Já aquelas que são ignoradas, negligenciadas ou invalidadas, tendem a desenvolver traços de insegurança, ansiedade, auto-regulação diminuída e baixa auto-estima.
Vinculação não é apenas proximidade física, é a experiência contínua de ser notado, valorizado e acompanhado ao longo do tempo. A ausência deste olhar consistente pode levar ao que alguns autores chamam de “pertencimento condicional”, descrito como a sensação de que só temos um lugar se cumprirmos determinadas expectativas.
O psicólogo Carl Rogers, um dos fundadores da psicologia humanista, enfatizou que o ser humano precisa de consideração positiva incondicional, isto é, ser visto, ouvido e aceite como é. Para Rogers, essa validação por parte de um outro é crucial para o desenvolvimento de uma auto-imagem saudável, pois sem ela, o self fragmenta-se.
Com isto, acredito já termos elementos suficientes que ilustram a escolha do título deste artigo: Ser Visto. Uma necessidade ontológica e vital. Sobretudo quando precisamos reconhecer que a sociedade contemporânea vive numa cultura de performance, com o olhar vazio.
O psicólogo alemão Byung-Chul Han elabora a discussão de como vivemos uma era de excesso de exposição, mas de profundo esvaziamento do encontro verdadeiro. Entre followers, likes e views, Han argumenta que o olhar tornou-se técnico, estatístico e perdeu a sua capacidade de estabelecer vínculo. “A sociedade do desempenho é a sociedade do cansaço”, diz Han. O cansaço de ser olhado, sem ser tocado.
Num mundo míope, saturado de imagens e carente de encontros, talvez o gesto mais radical que podemos oferecer seja o de abrir os olhos e ver, reparar.
Pois ser visto é mais do que ter os olhos sobre si, é ser reconhecido emocionalmente, é ter a experiência subjectiva legitimada pelo outro. O oposto de ser visto não é apenas ser ignorado, é ser tornado invisível. A invisibilidade social, emocional ou simbólica está no cerne de muitos sofrimentos psíquicos.
Quando somos vistos de forma genuína, sentimos que ocupamos um lugar na teia relacional da vida, é esta rede que sustenta o nosso sentido de segurança e identidade.
Quando olhamos alguém verdadeiramente, não apenas com os olhos, mas com presença e empatia, devolvemos-lhe a certeza de que a sua existência importa.
Ao olhar com presença e empatia, oferecemos ao outro algo que muitas pessoas nunca tiveram a oportunidade de experienciar plenamente – o testemunho existencial de que a sua história e a sua identidade têm lugar no mundo.
Ser visto é, portanto, uma necessidade primária, não no sentido fisiológico, mas no sentido ontológico. Ser visto é existir. E existir plenamente só é possível quando há um outro que nos reconhece, que nos valida e que nos acolhe.
Termino com as palavras do filósofo Martin Buber:“O ser humano torna-se eu no encontro com o tu.”
~ por Joana Sobreiro
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